AMEAÇA AO PALÁCIO GUSTAVO CAPENEMA E ÀS INSTITUIÇÕES DE PATRIMÔNIO E CULTURA NO BRASIL
No dia 13 de agosto de 2021 fomos surpreendidos com a notícia de que o governo federal do Brasil pretende colocar à venda um conjunto de mais de 2.000 imóveis localizados no Rio de Janeiro, alguns símbolos da arquitetura como o Edifício A Noite e o Palácio Gustavo Capanema, ambos notáveis exemplares do patrimônio cultural da cidade e do país. Primeiro arranha-céu da América do Sul em concreto armado e palco da Rádio Nacional, o edifício A Noite simboliza a memória dos nossos meios de comunicação de massa e encontra-se desocupado há anos. Já o Palácio Gustavo Capanema é ocupado por uma série de instituições dedicadas à Cultura e Educação, sendo um polo fervilhante de cultura desde a sua inauguração, em 1945, em função das várias instituições historicamente associadas ao patrimônio e à cultura, que serão definitivamente desalojadas dali caso a venda se concretize.
O Palácio Capanema foi construído entre 1937 e 1945 para ser a sede do recém-criado Ministério da Educação e Saúde, um marco no processo de formação do Estado-Nacional brasileiro. O projeto do edifício deveria refletir ao mesmo tempo um novo Brasil culto, educado, saudável e integrado ao concerto das nações, mas atrelado a sua identidade, história e patrimônio. Com 16 andares, é muito mais do que um marco fundamental da arquitetura moderna mundial: é um marco civilizatório do país e de um projeto de nação a partir da educação, cultura e saúde públicas. A política de patrimônio cultural brasileira, instituída na mesma época a partir da criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1937, com sede nos oitavo e nono andares do edifício desde sua inauguração, está intrinsecamente associada a este edifício e ambos constituem parte de um mesmo projeto civilizacional.
Com consultoria inicial do arquiteto suíço Le Corbusier, a equipe de arquitetos chefiada por Lucio Costa, na qual participavam Affonso E. Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcellos, Jorge Moreira e Oscar Niemeyer, conferiu identidade própria ao projeto. São superlativas todas as qualidades do edifício: murais e painéis de azulejo de Candido Portinari, Jardins de Roberto Burle Marx, escultura de Bruno Giorgi, primeiro edifício construído sob pilotis, deixando o terreno livre para circulação, primeiro edifício com uma fachada totalmente envidraçada nessas proporções no mundo. Por tudo isso, a estrutura montada na época foi uma referência na América do Sul e o edifício tornou-se um marco de inovação, que influenciou significativamente os rumos do movimento moderno no Brasil e no mundo. A partir desse momento, a arquitetura moderna no Brasil se singularizou por atender à demanda do mercado governamental, fato que provocou seu reconhecimento internacional.
Mesmo com a transferência da capital para Brasília em 1960, o edifício se manteve plenamente ocupado e desempenhando uma série de funções administrativas e culturais até hoje. Funcionam no edifício instituições como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), a Fundação Palmares, Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Fundação Nacional de Arte (FUNARTE) entre outras. Nele também estão sediados o Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN e o Centro Lucio Costa, um centro de categoria II da UNESCO voltado para a formação e atendendo aos países da América Sul e Países Africanos de Língua Portuguesa. Possui acervos importantes, tombados como patrimônio, como a Biblioteca Noronha Santos e o Arquivo Central do IPHAN, arquivo com parte significativa da história da política de patrimônio cultural do Brasil, bastante consultado por profissionais e estudantes. As atividades culturais e educacionais, promovidas e mantidas por essas instituições recebem cerca de 42.000 visitantes por ano, sem contar o público que participa de atividades artísticas como as exposições e no auditório Gilberto Freyre, na sala Sidney Miller, assim como as excursões de estudantes e turistas que visitam o Salão Portinari e os jardins suspensos de Burle Marx.
Neste momento, o edifício passa pela maior restauração de sua história, necessário após quase 80 anos de existência. Para isso, todas as instituições foram retiradas e instaladas provisoriamente em salas alugadas a um alto custo para o erário público, espalhadas pela cidade do Rio de Janeiro. Com obras avançadas, o projeto de restauração, financiado com dinheiro público, prevê a manutenção das funções administrativas, culturais e educacionais iniciais do edifício e uma ampliação do seu uso público e de visitações, maior mesmo que o original. Vender o Palácio Capanema significaria o desmanche dessa estrutura fundamental para o Rio de Janeiro e o Brasil, além de transformar em permanente os gastos atualmente provisórios de aluguel em instalações muitas vezes inadequadas às funções administrativas e educacionais que aquelas instituições exercem. Mesmo que o novo proprietário tenha o compromisso de manter as qualidades arquitetônicas do prédio, uma vez que é um Bem Tombado Federal, alijá-lo de sua função para a qual foi construído, da qual são partes inseparáveis seu caráter de edifício aberto ao público e de fomentador e executor de políticas culturais, representa um dano irreversível à cultura nacional. O despejo de todas as instituições que de fato ocupam o prédio por mais de 80 anos e fazem dele um dos edifícios de maior representatividade cultural no Centro do Rio de Janeiro significa uma derrocada impactante para a cultura não só no Brasil, como do mundo. Enquanto o edifício é um marco civilizatório, privatizá-lo é um marco do retrocesso civilizatório que estamos vivendo.
Por sua relevância, o edifício foi tombado e inscrito como patrimônio nacional em 1948 pouco após sua inauguração. Em 1996 ele foi incluído na Lista Indicativa do Brasil para a Lista do Patrimônio Mundial, um primeiro passo necessário para sua inscrição em definitivo pela UNESCO. A restauração em curso faz parte dos preparativos para o encaminhamento de sua candidatura para inscrição. O ICOMOS-Brasil, como organização-não-governamental assessora da UNESCO para o Patrimônio Mundial tem o dever de alertar que além de suas características arquitetônicas e artísticas excepcionais e inegáveis, seu valor cultural está associado às funções para as quais foi idealizado e que ainda hoje exerce. Retirar do edifício sua função histórica para a qual foi projetado, ligada à política de cultura e educação no país comprometerá de forma irremediável características importantes para a inscrição na Lista de Patrimônio Mundial da UNESCO. Critérios fundamentais para a inscrição, como autenticidade e integridade serão irremediavelmente afetados e isto poderá resultar em sua não inscrição em definitivo na Lista, acarretando mais este prejuízo de oportunidades para a cultura e economia no país, além de todos aqueles mencionados anteriormente. Por tudo isto, conclamamos às autoridades competentes do país para uma conscientização acerca do papel fundamental que este bem desempenha e seu valor para o Rio de Janeiro, o Brasil e mundo. Conclamamos também à comunidade nacional e internacional a tomarem lugar numa campanha para que o Palácio Capanema siga desempenhando o seu papel fundamental para o qual foi concebido como um Palácio da Cultura.
ICOMOS-Brasil, 15 de agosto de 2021.
Imagens: www.portal.iphan.gov.br
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